A autêntica formação litúrgica
Frei Luis Felipe C. Marques, OFMConv.
A formação litúrgica, como toda atividade formativa, é uma questão extremamente delicada. Afirma-se a necessidade, mas não é fácil compreender a modalidade mais autêntica e adequada. O Concílio Vaticano II, na Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, pensou em dois meios para possibilitar e fomentar a participação ativa, consciente e frutuosa dos fiéis na liturgia: a educação litúrgica do clero e dos fiéis e a reforma da própria liturgia.
O fruto mais visível do Concílio Vaticano II deve ser uma comunidade renovada, que canta o louvor ao seu Senhor, que tem consciência da participação nos mistérios de Deus que passam pela realidade profundamente humana dos sinais da liturgia. A liturgia é vida para todo o povo da Igreja: uma ação do povo, mas também para o povo. A ação ritual é uma praxe simbólica que comunica a aliança entre pessoas, manifesta a totalidade das ações, cria comunidades e estabiliza a vida.
Ao contrário de Mediator Dei, Sacrosanctum Concilium não se preocupou em definir o conceito de liturgia. Consequente, a ação litúrgica, teologia por excelência, do período pós-conciliar até hoje encontra-se diante de uma complexidade de desenvolvimentos epistemológicos. Atualmente, há várias tentativas de encontrar uma metodologia adequada para o aprofundamento, a vivência e o estudo da liturgia. Há uma grande necessidade da formação litúrgica e a mentalidade formativa emerge com força em todos os níveis. Assim, temos uma proliferação de conceitos e de impostações não sempre fundamentados na compreensão global do fato litúrgico (Medeiros, 2003, p. 421). Isso pode ser tratado como um problema e como uma solução. Perante uma realidade multicultural e em uma sociedade dividida como a nossa, a formação é um recurso quando, ao trazer alguns conceitos fundamentais sobre a Igreja e, consequentemente, sobre a liturgia, busca a unidade e a comunhão de todos com o Senhor.
A renovação e a formação litúrgica tem como finalidade favorecer a compreensão do verdadeiro sentido das celebrações na Igreja. A ação ritual, com as suas objetividades, põe a comunidade a salvo dos subjetivismos, resultado da prevalência de sensibilidades individuais, e de culturalismos, aquisições acríticas de elementos culturais que nada tem a ver com um processo correto de inculturação (DD 49). A necessidade da formação admite evitar a indeterminação das normas gerais em relação as realidades mais particulares. Definitivamente, o que está em jogo é a relação humano-divina na liturgia e as regras que garantem essa relação são fundamentais. A relação entre Deus e os seres humanos orienta toda a vida humana para Deus.
Liturgia e a experiência iniciática
A Liturgia é vida e não uma ideia racional a ser compreendida. Ela deve nos levar a viver uma experiência iniciática, transformando o nosso modo de pensar e de se comportar, e não a enriquecer a própria bagagem de ideias acerca de Deus. O culto litúrgico é uma nascente de vida e de luz para o nosso caminho de fé e não somente uma doutrina a compreender ou um rito a realizar; naturalmente é também isso, mas de outra maneira, indo muito além. Na oração litúrgica experimentamos a comunhão representada não por um pensamento abstrato, mas pela ação contemporânea de Cristo e da Igreja (Francisco, 2017).
Viemos de um passado em que a fé cristã e a prática litúrgica eram evidentes. A catequese era considerada preparatória à liturgia. O ensinamento devoto e uma explicação analógica piedosa eram os melhores meios para crescer na vida de fé. Passava-se do compreendido para o celebrado. No mundo atual, essa abordagem intelectualista não é mais suficiente para a vida eclesial. Não basta dar catequese, conteúdos bíblicos-catequéticos, ensinamentos morais, alguma explicação sobre a celebração dos sacramentos, recordar algumas rubricas e ter como fonte a Instrução Geral do Missal Romano. Em particular, a formação litúrgica não deve ser reduzida ao “pode ou não pode”. É o próprio mistério celebrado que inicia e forma. É o processo catecumenal e a revalorização da liturgia como centro vital e vitalizador da comunidade eclesial que transforma a existência e redescobre a dimensão celebrativo-litúrgico da fé (Buyst, 2011, p. 46).
Diante disso, três são as passagens fundamentais: iniciática (intro-ducere), educativa (e-ducere) e cultural (tra-ducere). Somos convictos de que a dinâmica litúrgica exige uma introdução à fé. É o primeiro e fundamental percurso de crescimento. É um percurso de reconstrução da linguagem e do entendimento. A segunda passagem é o e-ducare que significa o tirar fora as concepções equivocadas da fé e a condução gradual em direção a uma escolha de vida eclesial e vocacional (novitas vitae). Por fim, a última passagem trata-se de vivenciar a experiência cristã com os seus códigos, símbolos, gestos comunicativos e figuras enquanto capacidade de interpretar a vida humana e a realidade à luz da fé cristã. É a dinâmica de tradução da cultura que não é apenas admissão de códigos sociológicos convencionais, de habilidades, conhecimentos e métodos para o funcionamento eficaz do caminho futuro (Brambila, 2017, p. 163-167).
A liturgia como evento educativo
Formar à liturgia ou no espírito da liturgia é educar a viver a plenitude cristã através de escolhas evangélicas. A liturgia é fonte de formação porque nela age o primeiro formador da mente e do coração: o Espírito Santo. A experiência do Espírito é radical e garantia para todos os que se deixam envolver pela participação ativa e plena. A epiclese não é somente a oração consecratória, mas a realidade formativa do rito cristão. Desse modo, a condição básica da formação é deixar-se permear da profundidade do mistério de Cristo através das diversas linguagens da celebração.
Não obstante os benefícios da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, hoje o problema mais difícil é a transmissão do verdadeiro sentido da liturgia cristã. Observa-se uma grande tentação de voltar ao velhos formalismos ou de aventurar-se à procura de um ingênuo espetáculo. Assim, a força do evento sacramental não vem experimentada e vivenciada. Com efeito, precisamos de um itinerário que recupera o valor dos símbolos e dos ritos a partir de uma dimensão antropológica. Bem compreendida e praticada, a liturgia constrói um tipo de homem, de humanidade, um homem novo e não somente uma comunidade renovada.
A atitude mistagógica pertence estruturalmente à ação ritual cristã enquanto contemplação e presentificação do mistério. A própria celebração é mistagogia ou experiência dos mistérios. Desta maneira, é superada a visão redutiva que considera a celebração como meio para obter o fruto espiritual da graça e dos dons de Deus, e é superada a concepção conceitual e ideológica das celebrações litúrgicas transformadas em uma autêntica tempestade de palavras e de ideais morais, esquecendo os gestos, os símbolos, a estética e a participação plena e integral dos fiéis (Augé, 2002, p. 78).
O caminho mistagógico tem a intenção de mostrar como o mistério de Deus torna-se presente na ação litúrgica e como podemos melhor experimentá-lo. Dessa maneira, a formação mostra como a realidade salvífica ultrapassa os limites do tempo e do espaço e alcança a comunidade celebrante em todas as épocas. Por isso, a mistagogia é o itinerário que ajuda a entender o que os sacramentos significam para a vida. A vida sacramental gera o estilo próprio de ser cristão. A continuada participação no mistério orienta seu ser e agir no mundo, relaciona-o com a ética, suscita cada vez mais sua expressão na vida, abre-o para uma mentalidade capaz de construir uma visão nova e unitária dos mistérios da fé (Lelo, 2005, p. 65-80).
A metodologia mistagógica supera a fragmentação do conhecimento e do ensinamento. Ela serve como uma tentativa de ir além da justaposição dos conteúdos adotando um único método de trabalho ou uma única visão. Especificamente, o recurso da interdisciplinaridade que cultiva uma atitude interior que supera o individualismo e os absolutismos científicos insere o homem no contexto dialógico da fé. Essa prospectiva da complexidade modifica os posicionamentos ideológicos e considera que a realidade litúrgica, nos seus aspectos integrantes e constitutivos, é dinâmica. Essa dinamicidade crescente entre as abordagens teológicas, celebrativas e antropológicas-pastorais ajuda no entendimento do “que coisa”, do “como” e do “porque” celebramos.
Considerações finais
Tudo isso evidencia o estatuto iniciático e mistagógico da formação litúrgica: se forma à liturgia introduzindo a viver a liturgia, que constitua a identidade do fiel. Falar da formação como iniciação significa reconhecer o valor irredutível da celebração como evento que se coloca em ato. Nenhuma compreensão, por mais profunda que seja, da liturgia escrita pode superar a necessidade e o valor da liturgia em ato. Somente na celebração da liturgia se atua diretamente, no consenso entre a fé e a forma eclesial, a oferta da graça. Para formar verdadeiramente a liturgia e deixar-se ser formado por ela, é preciso entrar na celebração e experimentar o gosto que a liturgia faz viver nos ritos, nas palavras, nos gestos, nas preces, na gradualidade do mistério e na gratuidade do perdão. Dessa maneira, assumimos a consciência de que para celebrar é preciso ser formado, porém para formar-se é preciso celebrar.
Diante disso, formar-se para a liturgia e deixar ser formado pela liturgia é uma das empreitadas infindáveis e, por isso mesmo, maravilhosa. Em cada recorte da oração, em cada movimento do rito e do corpo, na potência do símbolo e na delicadeza do sinal, na singeleza do silêncio, uma coisa é certa, encontramos elementos que nos ajudam a admirar-se dos sutis vestígios da presença sublime, tão real e atuante do mistério de Cristo. Aproximar Deus do seu povo e o povo do seu Deus é a ação mais elementar da liturgia. É nela que encontramos a verdade da fé e a fé na verdade. É por ela que temos acesso à graça santificante que provém da Fonte de toda santidade. É com ela que fazemos comunidade que na fração do pão vivencia a Ceia do Senhor e o mistério da fé. Assim, para aproveitar dessa generosidade de Deus e da gratuidade da Igreja, uma formação adequada deve ser iniciática e mistagógica. Não podemos prescindir de uma inteligente sensibilidade que nos ajude a encontrar Deus nos sinais sensíveis da liturgia. Além de aprimorar constantemente os nossos conteúdos objetivos da fé, também consideramos importante manter uma busca saudável e apurada, da comunidade celebrante, sobre o que torna a liturgia uma ação sagrada por excelência.
Para viver plenamente a ação litúrgica e vivenciar a surpresa com o mistério, é necessária uma formação iniciática do povo Deus. Ao vivenciar e ampliar nossa compreensão de liturgia, passamos a obter a capacidade de nos surpreender com o que ocorre nas celebrações diante de nossos olhos. Conforme avançamos nessa ótica, conseguimos participar do culto com profundo sentido de reverência e maravilha, reconhecendo o mistério que se desdobra diante de nós.
A formação em chave mistagógica nos ajuda a entender as diversas abordagens da ação formativa e pastoral da Igreja. Na verdade, desenvolvendo o discurso a partir da densidade do símbolo litúrgico, ela coloca uma nova luz na intencionalidade formativa pois alimenta-se com a experiencia concreta da fé celebrada e se opõe a toda redução formalista e ritualista da celebração. Assim, não transforma a teologia-litúrgica em erudição dogmática e a vivência existencial da liturgia em moralismo. Nesse sentido, a formação litúrgica será eficaz, também em relação à renovação eclesial, porque ajudará os sujeitos da celebração a assumirem a forma cristã da existência na celebração e a partir da celebração. No celebrar o mistério da fé nos ritos e nas preces, dia após dia, a Igreja torna-se digna de estar na presença do Senhor e servi-Lo.
Referências bibliográficas
AUGÉ, M. Espiritualidade litúrgica - “Oferecei vossos corpos em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus”. São Paulo: Ave-Maria, 2002.
BRAMBILLA, F. Liber pastoralis. Brescia: Queriniana, 2017.
FRANCISCO, PP. Discurso aos participantes na 68ª Semana Litúrgica Nacional de 24 agosto 2017. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2017/august/documents/papa-francesco_20170824_settimana-liturgica-nazionale.html. Acesso em: 15 mai. 2023.
LELO, A. Mistagogia: participação no mistério da fé. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 65, n. 257, p. 64–81, 2005.
MEDEIROS, D. Un dibattito attuale: l’epistemologia della scienza liturgica. Rivista Liturgica, ano 90, v. 2/3, p.419-424, 2003