A CELEBRAÇÃO DO SÊDER JUDAICO POR COMUNIDADES CRISTÃS: Um caminho teólogico, litúrgico e pastoral adequado?

A CELEBRAÇÃO DO SÊDER JUDAICO POR COMUNIDADES CRISTÃS: Um caminho teólogico, litúrgico e pastoral adequado?

 Vinícius Schumaher 

1.⁠ ⁠Contextualizar o fenômeno 

No contexto das celebrações pascais, observa-se em algumas comunidades cristãs, sobretudo de inspiração carismática ou catequética, a adoção de práticas rituais inspiradas no Sêder judaico. Tais celebrações são comumente apresentadas como uma forma de “reviver” a Última Ceia de Jesus, valorizando a herança judaica do cristianismo. Embora a motivação pedagógica e simbólica possa ser legítima, a prática em si suscita questionamentos relevantes quanto à fidelidade teológica, ao respeito inter-religioso e à integridade litúrgica. A presente reflexão pretende, assim, contribuir para um discernimento mais profundo e responsável sobre o tema.

2.⁠ ⁠O Sêder de Pessach: significação e identidade na fé judaica

O Sêder de Pessach é a celebração ritual que marca o início da festividade judaica da Páscoa. Fundamentado no mandamento divino de recordar anualmente a libertação do povo hebreu da escravidão no Egito (cf. Ex 12,1-30), o Sêder tem uma estrutura litúrgica própria, que envolve a leitura da Hagadá, o consumo de alimentos simbólicos (ervas amargas, pão ázimo, charoset, entre outros) e uma série de bênçãos, cânticos e perguntas que visam transmitir a tradição aos filhos (SCHOLEM, 2001).

Trata-se, portanto, de uma celebração central na identidade religiosa do povo judeu. Mais que uma recordação histórica, o Sêder é uma reatualização da experiência fundante da fé judaica. Conforme indica a tradição rabínica, “em cada geração, cada pessoa deve ver-se a si mesma como se tivesse saído do Egito” (MISHNÁ Pessachim 10:5). É um rito sagrado, com significado profundo e específico, que não pode ser desvinculado de seu contexto religioso, cultural e comunitário.

3.⁠ ⁠A Última Ceia e a especificidade da Eucaristia cristã

A Última Ceia de Jesus, narrada nos evangelhos sinóticos (Mt 26,17-30; Mc 14,12-26; Lc 22,7-38), ocorre em um contexto pascal judaico. No entanto, Jesus transforma profundamente o sentido daquele momento ao reinterpretar os elementos do pão e do vinho, vinculando-os à sua entrega redentora: “Isto é o meu corpo... este é o cálice do meu sangue” (cf. Mc 14,22-24). Com isso, inaugura-se um novo memorial — o memorial de sua paixão, morte e ressurreição — que é celebrado pelos cristãos como Eucaristia (CIC, 1993, n. 1323-1330).

A Eucaristia não é uma simples repetição da ceia judaica, mas uma nova realidade teológica e sacramental. Conforme afirma Joseph Ratzinger, “a Última Ceia está inserida no contexto da Páscoa judaica, mas é ao mesmo tempo uma nova criação, um novo culto” (RATZINGER, 2007, p. 140). A celebração cristã, portanto, possui sua própria estrutura litúrgica, teológica e simbólica, fundamentada na Páscoa de Cristo, que é o verdadeiro Cordeiro (cf. 1Cor 5,7).

4.⁠ ⁠Problemas teológicos, pastorais, apropriação cultural e religiosa na encenação cristã do Sêder

A tentativa de reproduzir o Sêder em contexto cristão, especialmente durante a Semana Santa, incorre em diversos problemas, que precisam ser considerados com seriedade pastoral e teológica.

Realizar o Sêder fora de seu contexto judaico é, antes de tudo, um gesto de apropriação de um rito que não pertence à tradição cristã. Tal prática, mesmo bem-intencionada, pode desrespeitar a sacralidade e a identidade de um povo. A Comissão para as Relações Religiosas com o Judaísmo, em seu documento de 1985, adverte contra o uso indevido de elementos judaicos por parte de cristãos: “é necessário evitar apresentar o judaísmo de modo artificial, que possa empobrecer seu significado autêntico” (CRRJ, 1985).

Muitos fiéis podem confundir o Sêder com a Eucaristia ou pensar que a Última Ceia foi apenas uma ceia judaica, sem compreender a inovação cristológica realizada por Jesus. Isso pode levar a sincretismos e interpretações equivocadas da liturgia cristã. A teologia litúrgica católica insiste que “os sinais sacramentais não são meros símbolos históricos, mas realidades eficazes que atualizam o mistério pascal” (SC, n. 7).

Paradoxalmente, a tentativa de se aproximar do judaísmo por meio da encenação do Sêder pode minar o verdadeiro diálogo inter-religioso. A Nostra Aetate recomenda que os cristãos se aproximem dos judeus com respeito, reconhecendo a alteridade de sua fé e evitando proselitismos ou reduções (PAULO VI, 1965, n. 4). O respeito ao outro começa pelo reconhecimento dos limites do que nos é próprio.

5.⁠ ⁠Caminhos alternativos e positivos para a formação cristã

Em vez de reproduzir ritos alheios, a catequese cristã pode se enriquecer de forma mais frutífera por meio de abordagens que respeitem tanto a identidade judaica quanto a especificidade cristã.

Estudos bíblicos e históricos: a formação dos fiéis pode incluir reflexões sobre o Êxodo, a Páscoa judaica e sua conexão com a Páscoa cristã, sempre com base na Escritura e na Tradição.

Encontros inter-religiosos: promover espaços de diálogo com comunidades judaicas locais, convidando representantes para explicar suas tradições, favorece o respeito e o aprendizado mútuo.

Valorização da Eucaristia: aprofundar a teologia e espiritualidade eucarísticas é essencial para que os cristãos compreendam a originalidade e a profundidade do memorial pascal de Cristo.

Liturgia bem celebrada: o zelo litúrgico na celebração da Semana Santa, com atenção aos ritos próprios do Tríduo Pascal, já é em si uma poderosa catequese sobre o mistério da Páscoa cristã.

6.⁠ ⁠Acolher a história com respeito, mas celebrar o Mistério de Cristo

A celebração do Sêder judaico por comunidades cristãs, embora possa surgir de um desejo legítimo de compreensão das raízes da fé, representa um equívoco teológico e pastoral. Tal prática tende a desrespeitar a tradição judaica, comprometer a clareza litúrgica da fé cristã e enfraquecer o diálogo inter-religioso. A fidelidade à própria fé cristã exige não apenas conhecimento das origens, mas também reverência ao mistério celebrado e ao outro que crê de forma diferente.

O caminho proposto pela Igreja é o do diálogo respeitoso, do estudo profundo e da vivência autêntica da própria fé, sem recorrer a reproduções superficiais ou indevidas de ritos sagrados de outras tradições. 
Ao cristão cabe reconhecer a raiz judaica de sua fé. E a Igreja em seu magistério e rito soube fazer isso muito bem, na Celebração da Paixão do Senhor, no Tríduo da Cruz, rezamos na Oração Universal:

Oremos pelos judeus, aos quais o Senhor nosso Deus falou em primeiro lugar, a fim de que cresçam na fidelidade de sua aliança e no amor do seu nome.

Deus eterno e todo-poderoso, que fizestes vossas promessas a Abraão e seus descendentes, escutai as preces da vossa Igreja. Que o povo da primitiva aliança mereça alcançar a plenitude da vossa redenção. Por Cristo, nosso Senhor. (MR. 214p. N.13)

A nós cristãos cabe o respeito às nossas raízes judaicas e acolher, com maturidade e reverência, a novidade trazida por Cristo, particularmente no mistério pascal celebrado na Eucaristia.

Referências

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 1993.

COMISSÃO PARA AS RELAÇÕES RELIGIOSAS COM O JUDAÍSMO. Notas sobre a maneira correta de apresentar os judeus e o judaísmo na pregação e na catequese da Igreja Católica Romana. Vaticano, 1985.

PAULO VI. Declaração Nostra Aetate sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs. Concílio Vaticano II, 1965.

RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: Do Batismo no Jordão à Transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007.

SCHOLEM, Gershom. A mística judaica: As grandes correntes. São Paulo: Perspectiva, 2001.

SOBRINO, Jon. Cristologia a partir da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1993.

CONCÍLIO VATICANO II. Sacrosanctum Concilium – Constituição sobre a Sagrada Liturgia. In: CONCÍLIO VATICANO II. Documentos completos. 13. ed. São Paulo: Paulus, 2006. p. 11-66.

** Psicólogo, leigo e liturgista da Diocese de Votuporanga. Membro da Rede Celebra.

 
Indique a um amigo