A IGREJA FECUNDADA PELO ESPOSO RESSUSCITADO: O GESTO RITUAL DO MERGULHO DO CÍRIO PASCAL NA FONTE BATISMAL
Vinícius Schumaher¹
“Sim, como mulher abandonada e aflita, o Senhor te chamou, como a esposa da juventude que foi repudiada, diz o teu Deus. Por um breve instante eu te abandonei, mas com imensa compaixão volto a acolher-te”. (Is 54,6-7)
A Vigília Pascal é um mergulho. Um mergulho na noite, no silêncio, na espera. Mas também um mergulho na luz, na promessa, na vida que renasce.
É do nosso saber que essa celebração carrega uma enorme força sacramental, expressa através do seu conjunto de ritos — às vezes nos passando despercebidos, seja pela fraqueza catequética-ritual na qual fomos acometidos historicamente ou pela falta de cuidado e inteireza na execução dos próprios ritos por parte dos ministérios.
No coração dessa celebração, tão rica em símbolos e teologia, há um gesto que nos toca profundamente: o momento em que o Círio Pascal é mergulhado na água batismal.
É um gesto breve, quase discreto, mas absolutamente carregado de sentido. Ali, naquele instante, algo acontece. E se olharmos com o coração desperto, conseguimos ver: Cristo, Esposo glorioso, une-se à sua Igreja. O Círio é luz, é entrega, é presença viva do Ressuscitado. A água é ventre, é acolhida, é espaço da fecundidade espiritual. Quando a luz toca a água, não é apenas rito — é fecundação, é geração.
A tradição cristã sempre viu nessa relação uma dimensão nupcial. Como escreveu São Paulo: “Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, para santificá-la pela água e pela palavra” (Ef 5,25-26). É isso que vemos ali, na pia batismal: a união do Esposo com sua Esposa, gerando filhos e filhas para Deus.
Esse gesto toca algo que é muito profundo: o reconhecimento de que não somos apenas “convertidos” por decisão racional. Somos gerados. Somos nascidos do alto (Jo 3,3), de um Mistério que nos excede, mas que nos toca. E isso acontece quando a luz penetra as águas, quando o Cristo fecunda a Igreja com a
sua vida nova, quando o Espírito paira sobre o caos da alma e recria tudo, como no Gênesis (Gn 1,2).
E então, na solenidade desse instante, o presbítero mergulha o Círio na água e proclama em nome da Igreja:
“Nós vos pedimos, ó Pai, que por vosso Filho desça sobre toda esta água a força do Espírito Santo. E todos os que, pelo Batismo, forem sepultados com Cristo, ressuscitem com ele para a vida” (IGREJA CATÓLICA, 2023, p. 304).
É prece que carrega o peso de séculos e a graça de um novo nascimento. A Igreja não apenas acolhe — ela se deixa transformar. E por isso ela gera. E nós, que muitas vezes nos sentimos secos, estéreis, distantes, somos convidados a deixar que essa luz nos toque de novo. Que entre nas nossas águas interiores, às vezes turvas, e as fecunde. A Vigília é isso: um parto litúrgico, uma noite de nascimento.
Para os Padres da Igreja, os ritos batismais eram de extrema importância. São Gregório de Nazianzo, no século IV, refletia sobre o poder do batismo, dizendo:
“O que vemos com os olhos, nos ensina sobre o que não vemos com os olhos. A água é a mãe da nossa salvação, por ela passamos da morte para a vida” (GREGÓRIO DE NAZIANZO, 2008, p. 235).
Ele falava de uma verdade misteriosa: a água do batismo não é uma água qualquer, mas a água que traz consigo a ressurreição, a água que traz o Espírito.
São João Crisóstomo nos ajuda a compreender ainda mais profundamente o simbolismo da água, ao afirmar:
“A água que vemos, é o símbolo do sangue de Cristo; e como Cristo morreu e foi sepultado, assim a água sepulta o cristão para a ressurreição” (CRISÓSTOMO, 2008, p. 241).
São João conecta a morte e a ressurreição de Cristo com o símbolo batismal, nos fazendo entender que, ao ser imerso na água, o cristão não é apenas purificado, mas participa de um mistério de morte e vida.
O Papa Francisco, em sua carta Desiderio Desideravi, nos recorda com clareza e sabedoria:
“Os ritos litúrgicos não são apenas sinais vazios; eles são eficazes, pois ao serem realizados em nome da Igreja, são fonte de graça e de transformação” (FRANCISCO, 2022, n. 24).
O rito, portanto, não é algo que se limita ao simples simbolismo humano, mas um meio através do qual a ação divina se torna presente e nos toca profundamente.
A Igreja não apenas acolhe — ela se deixa transformar. E por isso ela gera. E nós, que muitas vezes nos sentimos como ossos ressequidos, ouvimos da boca do próprio Senhor que Ele derramará em nós uma água pura (cf. Ez 36,25).
Somos convidados a deixar que essa fonte viva e iluminada nos toque de novo. Que entre nas nossas águas interiores, na nossa humanidade e as fecunde. A Vigília é isso: um parto litúrgico, uma noite de nascimento.
Santo Ambrósio dizia:
“Vistes as águas, mas não o efeito. Vistes o movimento, mas não a graça. O renascimento é invisível, mas verdadeiro” (AMBROSIO DE MILÃO, 2008, p. 223).
Deixemos que toda a liturgia batismal da mãe de todas as vigílias fale ao nosso íntimo, que ela nos lembre de onde viemos e quem nos gerou.
Cristo e a Igreja. A luz e a fonte. A entrega e o acolhimento. Na fecundidade desse encontro, brota a nossa vida nova. Que essa verdade não seja apenas contemplada, mas vivida — até que toda a nossa existência seja moldada pela Páscoa do Senhor.
REFERÊNCIAS
AMBROSIO DE MILÃO. Os sacramentos. Tradução de Maurício da Silva Costa. In: RUIZ, Frederico Lourenço (Org.). Patrística: Antologia de textos dos Padres da Igreja. São Paulo: Loyola, 2008.
BÍBLIA. Tradução da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. 2. ed. Aparecida: Edições CNBB, 2022.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2000.
CRISÓSTOMO, João. Homilias sobre o Batismo. In: RUIZ, Frederico Lourenço (Org.). Patrística: Antologia de textos dos Padres da Igreja. São Paulo: Loyola, 2008.
FRANCISCO, Papa. Desiderio Desideravi: Sobre a Formação Litúrgica do Povo de Deus. Vaticano, 2022.
GREGÓRIO DE NAZIANZO. Oratória 40. In: RUIZ, Frederico Lourenço (Org.). Patrística: Antologia de textos dos Padres da Igreja. São Paulo: Loyola, 2008.
IGREJA CATÓLICA. Missal Romano: terceira edição típica. Tradução da edição típica latina. Brasília, DF: Edições CNBB, 2023.
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¹ Vinícius Schumaher é psicólogo, com formação complementar em antropologia. Atua como leigo e liturgista na Diocese de Votuporanga/SP e integra a Rede Celebra – Rede Nacional de Animação Litúrgica do Brasil.