A PRESENÇA DE CRISTO NO SACRAMENTO DA PENITÊNCIA
Dom Paulo DOMICIANO, OSB
A leitura de Sacrosanctum Concilium (SC) 7, ao destacar os diversos modos de mediação da presença de Cristo nas ações litúrgicas, nos ajuda a compreender a estrutura renovada dos ritos sacramentais, manifestando de modo mais evidente sua natureza, seu significado e sua dinâmica salvífica. “Para realizar tão grande obra, Cristo está sempre presente na sua igreja, especialmente nas ações litúrgicas”[1].
A reforma do ritual da Penitência favorece a compreensão do caráter celebrativo do Sacramento e não a simples “administração” do mesmo, em seu caráter exclusivamente privado. Tal celebração é lugar de encontro com Cristo, de sua epifania e continuação de sua ação salvífica na vida dos homens, pois Ele “está presente com sua força nos Sacramentos”[2].
No que se refere à celebração litúrgica, SC 7 afirma que Cristo está presente na pessoa do ministro, afirmando: “Está presente com sua força nos Sacramentos, de maneira que, quando alguém batiza é Cristo que batiza”. O n.9 da Introdução Geral (IG) do Ritual da Penitência indica o bispo ou o presbítero como ministros do Sacramento, que anunciam e concedem o perdão dos pecados em nome de Cristo e pelo poder do Espírito Santo. Portanto, quem perdoa o pecador é Cristo[3].
Além disso, a própria ação ritual realizada através do ministro e da comunidade eclesial, os gestos, as palavras, os sinais, revelam a presença de Cristo, que vem ao encontro daquele que foi ferido pelo pecado, curando o ser humano total, corpo e alma.
Uma outra forma da presença de Cristo na liturgia se dá através de sua Palavra, “pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura”[4]. A partir da orientação dada pelo Concílio Vaticano II sobre a revisão dos rituais dos Sacramentos logo se verifica a importância dada e o lugar conferido à Palavra de Deus na celebração dos Sacramentos. Pastoralmente sabemos o quanto a escolha das leituras para a celebração de um batismo ou de um matrimônio, que serão proclamadas e aprofundadas na homilia, favorece a participação ativa e evidenciam a ação sacramental.
A renovação do rito do Sacramento da Reconciliação, em suas três possíveis formas de celebração, também foi investido dessa presença mais abundante, variada e adaptada da Escrituras[5]. Tal investimento não contempla apenas um caráter pedagógico e catequético da celebração, mas nos introduz propriamente na dinâmica do Sacramento, revela a presença de Cristo, que opera e age nos sinais e gestos sacramentais, constituindo-se em epifania do mistério celebrado.
Como lembra a Introdução Geral do Ritual, “a Palavra de Deus ilumina o fiel para o reconhecimento de seus pecados, chama-o à conversão e leva-o a confiar na misericórdia divina”[6].
Finalmente, SC 7 afirma que Cristo “Está presente ainda quando a Igreja ora e canta salmos, pois ele prometeu: «Onde estiverem dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, Eu estarei ali no meio deles» (Mt. 18,20)”[7]. Sem dúvida, a recuperação do caráter eclesial da celebração deste, como dos demais Sacramentos, é uma aquisição de valor inestimável. Como enuncia a IG. 22 do Ritual da Penitência: “A celebração em comum manifesta mais claramente a natureza eclesial do sacramento”[8].
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Dito isto, gostaria de chamar a atenção para a questão do espaço concedido à Palavra de Deus na celebração deste Sacramento, mais evidente em sua forma comunitária, contudo, também presente na celebração individual.
No que se refere ao Sacramento da Reconciliação, vale lembrar que na Antiguidade a proclamação da Palavra de Deus sempre ocupou um lugar importante na prática da penitência pública dos fiéis que eram admitidos na ordem dos penitentes e deveriam participar durante vários meses, até anos, da primeira parte da liturgia dominical. Assim, a Palavra de Deus entrava naturalmente no processo penitencial. Contudo, com a introdução de novos ritos de reconciliação regidos pelas penitências e “tarifas” impostas de acordo com cada tipo de pecado, a proclamação da Palavra de Deus se distancia da celebração.
Evidentemente ela sempre esteve presente como apelo de conversão, como preparação ou mesmo na oração dos penitentes, mas sem uma relação ritual precisa. Este distanciamento, acentuado pelos escolásticos e a busca pela determinação da forma do sacramento, se manteve ao longo dos séculos na prática católica da confissão. Somente com o Vaticano II, que propôs a restituição do lugar da Palavra de Deus nas celebrações de todos os sacramentos, conduzirá ao novo ritual da Reconciliação em sua forma comunitária e individual.
É interessante retomarmos as orientações dadas pela SC sobre isso:
“É enorme a importância da Sagrada Escritura na celebração da Liturgia. Porque é a ela que se vão buscar as leituras que se explicam na homilia […]; dela tiram a sua capacidade de significação as ações e os sinais”[9].
Do mesmo modo, a Constituição declara:
“Para que apareça claramente a profunda sintonia do rito com a Palavra na Liturgia: nas celebrações litúrgicas, sejam feitas leituras das Sagradas Escrituras com mais abundância, maior variedade e mais adaptadas às ocasiões”[10].
Podemos notar que as orientações conciliares são gerais, contudo, a noção de que Palavra e rito se iluminam e se revelam reciprocamente, é fundamental. As disposições do ritual renovado resultam de um trabalho de conjunto com o fim de recuperar o lugar da Palavra de Deus nas celebrações sacramentais – pensemos, neste sentido, no enorme trabalho realizado na reforma dos Lecionários para a liturgia da Palavra da celebração Eucarística. Do mesmo modo, para os demais rituais dos sacramentos, buscou-se elaborar um elenco variado de leituras, possibilitando a escolha das mesmas segundo as diversas situação que possam se apresentar, tanto na celebração individual como a comunitária.
Na celebração comunitária do Sacramento da Reconciliação nos parece mais evidente o lugar que a Palavra de Deus deve ocupar na sequência ritual. É prevista uma liturgia da Palavra, propriamente dita, que ilumina os fiéis para o sentido do Sacramento, reconhecendo sua condição de pecadores, de necessitados da força de Deus, deixando-se interpelar pelo convite à conversão e a confiança na misericórdia divina[11]. Mas, acima de tudo, a Palavra proclamada nos revela o próprio Verbo que nos fala, pois, como já recordamos, quando as Escritura são lidas na Igreja é o próprio Cristo que fala.
A liturgia da Palavra não é mera introdução ao rito ou ilustração de seu significado e efeito, mas é acontecimento, nos localizando naquele “hoje” da ação de Deus, que o próprio Senhor anunciou na sinagoga de Nazaré[12], fazendo de nós autênticos atores e destinatários da força dinâmica dos Sacramentos.
Contudo, é preciso constatar que, na celebração individual do Sacramento, por diversas razões, este lugar dado à liturgia da Palavra proposto pela reforma dos rituais, nem sempre é efetivo[13]. O ritual prevê que a leitura da Palavra de Deus é “facultativa”, mesmo que a IG 24 insista sobre a conveniência de se iniciar a celebração com a escuta da Palavra.
De qualquer forma, a prática do anúncio ou a simples leitura da Palavra de Deus no ato da celebração individual é ainda pouco aplicada. Do mesmo modo, é raro que o penitente se prepare para celebrar a Reconciliação mediante a leitura e oração de algum texto bíblico. Ao menos o sinal penitencial proposto pelo ministro poderia incentivar a leitura das Escrituras, como caminho de conversão e de fortalecimento da vida do fiel.
São múltiplas as razões pelas quais a Palavra de Deus ainda não ocupa este espaço mais abrangente que lhe é devido nas celebrações individuais. Poderíamos apenas citar alguns[14]:
- a força do hábito: afinal foram séculos onde predominou a estrita concepção de “administração” do sacramento, sem haver um verdadeiro espaço para a Palavra de Deus;
- a dificuldade de se perceber este sacramento como celebração, onde a Palavra deveria encontra seu lugar como em qualquer ação litúrgica comunitária;
- a maleabilidade do próprio rito, deixando ao critério do ministro a possiblidade de escolha em relação às diversas possibilidades de se introduzir a Palavra de Deus na sequência ritual; o que pastoralmente é muito válido e positivo, mas que às vezes deixa uma margem muito larga à improvisação, visto que o rito reclama por estabilidade em sua estrutura;
- falta de clareza sobre o papel da Palavra de Deus: ela não pode ser reduzida a uma função utilitária, visto que o ritual nos orienta em outra direção: trata-se de uma Palavra que anuncia em primeiro lugar o amor de Deus e sua misericórdia, que convida o fiel arrependido, se convertendo a este amor, a confessar a misericórdia de Deus e os seus pecados,acolhendo com esperança a força que vem de Cristo mediante a presença da Igreja.
Deveríamos nos deixar interrogar sobre estas e outras razões para eventualmente poder encontrar caminhos que nos levem a explorar com maior largueza a riqueza oferecida pelos rituais renovados. O importante é nos darmos conta de que estamos a caminho, apesar de certas dificuldades. A reflexão e as iniciativas de uma autêntica catequese litúrgica, como exorta o papa Francisco em sua Carta Apostólica sobre a formação litúrgica[15], sem dúvida, nos permitirão avançar na descoberta e vivência frutuosa dos rituais sacramentais renovados. Além disso, a prática das celebrações comunitárias da Reconciliação, com confissão e absolvição individuais, abre o horizonte para contemplá-los em sua natureza mais autêntica, isto é, seu caráter intrinsecamente eclesial, que se manifesta de modo mais explicito nelas, visto que elas dão espaço ao que está presente de modo concentrado nas celebrações individuais do Sacramento.
Deste modo, sob uma perspectiva otimista e positiva, podemos considerar que estamos em pleno trabalho e que precisamos nos deixar cada vez mais fascinar e converter a Cristo, que a riqueza dos ritos litúrgicos nos permitem ter acesso.
Bibliografia
- Ritual da Penitência, São Paulo, 1999.
- COSTA, B. O desafio da celebração da conversão na comunidade cristã Leitura dos Praenotanda (“princípios gerais”) do ritual da Penitência, Revista da UCP Humanística e Teologia. 37:1, 2016, 145-158. Disponível em: https://revistas.ucp.pt/index.php/humanisticaeteologia/issue/view/578. Acesso em: 01/03/2025.
- DE CLERCK, P. Célébrer la pénitence, ou la réconciliation ? Essai de discernement théologique à propos du nouveau Rituel, Revue théologique de Louvain 13, 1982, 387-424.
- FRANCISCO. Carta Apostólica Desiderio Desideravi, Brasília, 2022.
- JOUNEL, P. La liturgie de la réconciliation, LMD 117, 1974, 7-37.
- ROUMANET, P. De la Parole de Dieu dans la célébration individuelle, LMD 214 1998/2, p.129-139.
- VISENTIN, P. Penitência, in: Dicionário de liturgia, São Paulo, 1992, p. 920-937.
[1] SC n. 7.
[2] Ibid.
[3] Cf. Ritual da Penitência, IG n.6.
[4] Ibid.
[5] Cf. SC n.35.
[6] IG n.17.
[7] Ibid.
[8] IG n.22.
[9] SC n.24.
[10] SC, n. 35.
[11] Cf. IG n.17.
[12] Cf. Lc 4,16-21.
[13] Vale notar que tal fenômeno acontece também no contexto da celebração do Sacramento da Unção dos enfermos, onde o ministro se depara muitas vezes, como é previsto pelo próprio ritual, com os limites das condições de saúde do próprio enfermo, fazendo-se necessária a oportuna adaptação do rito às circunstâncias de lugar e pessoa (cf. Praen. Unção dos enfermos n.41).
[14] Cf. P. Roumanet. De la Parole de Dieu dans la célébration individuelle, La Maison-Dieu 214 (1998/2), p.135
[15] Francisco, Desiderio Desideravi, 2022, n. 34ss.