A TRINDADE COMO “PERICORÉSE” LITÚRGICA
Roberto Sandoval Batista da Silva Junior[1]
Introdução
O Criador, desde a arché do mundo, quis que as coisas fossem guiadas por seu Espírito, que se movia pelo vazio do mundo. Esse movimento “espiritual” despertou em todas as criaturas o desejo de mover-se por tudo aquilo “que era bom” (Gn 1,25). Esse movimento parte do desejo divino que age em nós, “pois nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28). Por esta ação do Santo Espírito, é que toda a Igreja é movida, principalmente quando nos referimos à Liturgia no todo, como também aos Ritos Litúrgicos, que custodiam a beleza eucológica que pela fé se torna movimento, ou seja, ação.
Podemos dizer que esse movimento, ação, que estamos nos referindo, é fruto do Dom da Sabedoria, que recebemos por graça divina. O próprio texto bíblico apresenta como uma das personificações atribuídas a Sabedoria, como móvel e penetrante (cf. Sb 7,22), e o texto ainda continua, “a Sabedoria é mais móvel que qualquer movimento e, por sua pureza, tudo atravessa e penetra.” (Sb 7,24). Com essa imagem da sabedoria, podemos perceber a pericorésetrinitária, ou seja, o movimento da trindade que em tu age e penetra, imprimindo assim seus dons e graças.
Essa sabedoria/movimento, acompanhou toda a história da salvação, em todos os séculos, perpassando todo espaço e tempo, até que nos dias de hoje, ainda é concedida a nós, bastando abrir-se a ação de onde provém toda a ação, a Trindade. Na vida da dominicana Catarina de Sena, Doutora da Igreja, podemos provar desde a inteligência, a beleza e a sabedoria que o Espírito Santo, comunica aqueles que se abrem a Sua ação, para serem capazes de amar.
A capacidade de amar também é movimento. Bento XVI nos diz: “a Eucaristia arrasta-nos no ato oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica de sua doação” (Deus Caritas est 13), ele ainda acrescenta: “a ‘mística’ do Sacramento, que se funda no abaixamento de Deus até nós, é de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer mística elevação do ser humano poderia realizar”. Ao longo deste artigo, vamos “navegar” em alguns aspectos do movimento na ação ritual a partir da ação trinitária.
1- O movimento na celebração litúrgica
Este movimento é um perfeito diálogo acompanhado de atenção, entre o presidente da celebração Litúrgica e o povo sacerdotal que celebra. Ambos se dispõem em dois coros de forma dialogante, tornando deste modo, possível o movimento da ação coletiva que acontece na Liturgia (Cf: Guardini, 2018). A ideia proposta por Romano Guardini, intitula que o presidente da celebração Litúrgica deve ser como que um verdadeiro maestro (Cf: Guardini, 2018), que com muita solenidade rege a sua “orquestra”, sabendo o momento certo de fazê-la cantar, tocar e silenciar, criando uma perfeita melodia. Destarte, cada um: presidente e assembleia em sua devida função e em um perfeito movimento, criam a harmonia Litúrgica entre eles.
Podemos acreditar que o renomado teólogo, já vislumbrava aquilo que está presente na Sacrosanctum Concilium, quando se refere a participação ativa, plena e consciente dos fiéis. Por isso, Guardini discorrendo sobre a função do presidente afirma que, ele,
Deve esboçar as ideias condutoras, executar trechos difíceis, resumir o sentimento coletivo em determinados pontos culminantes da oração, intercalar pausas entre as partes didáticas e as partes propriamente contemplativas [...]. Tal é a função do chefe do coro que recebeu na liturgia uma formação cuidadosa e progressiva (2018, p. 23).
A origem etimológica da palavra movimento vem do latim movo, -ere, que significa pôr-se em movimento, agitar-se. Se colocar em movimento é próprio daquele que participa de uma celebração Litúrgica. Quando estamos inseridos nos movemos, movemo-nos ainda quando vamos ao encontro do altar do Senhor para ouvir Sua Palavra e alimentarmo-nos de seu Corpo e Sangue, nos movemos quando nos prostramos ou reverenciamos, e ainda quando a “assembleia convocada por Deus se levanta e começa a cantar. Enquanto uns caminham, outros cantam” (Marques, 2023, p. 50). Dessa forma, a Liturgia torna-se aquilo que ela é: ação do Sacerdócio de Jesus Cristo (SC 2), portanto: movimento.
Consequentemente, para “viverem plenamente a ação litúrgica e vivenciar a surpresa com o mistério” (Marques, 2023, p. 11), o presidente e a assembleia devem abrir a ação do Espírito que tudo conduz. Esse movimento de corpo e da alma que acontece na Liturgia, é um convite da própria Trindade para a comunidade sacerdotal mergulhar em Seu amor por meio dos Mistérios de Jesus Cristo que se tornam celebração.
É esse movimento da Trindade que acontece em toda Liturgia que conduz a assembleia dos batizados a experienciar per ritus et preces no hoje da história a Páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, assim, “do Mistério Pascal de Cristo, que a Liturgia torna presente e eficaz na celebração dos sacramentos, brota toda a vida e a oração da Igreja, enquanto culmen et fons” (Marsili, 2012, p. 17), ou seja, de onde brotam a força e a vivacidade da vida e para onde se encaminhar nosso peregrinar terreno rumo ao céu.
2- A “dança divina”
Encontramos no hinário Litúrgico da Diocese de Duque de Caxias, um poema musicado que trata da Santíssima Trindade. O autor, Dom Valfredo Tepe (OFM), acreditamos que provavelmente buscou inspiração nos textos Litúrgicos da Solenidade da Santíssima Trindade como também em São João Damasceno. Dom Valfredo, no epílogo de sua obra “Nós somos um. Um retiro trinitário”, apresenta a situação de um determinado grupo, que meditava o ícone da Santíssima Trindade de Andrêi Rubliov que louvava com o seguinte canto:
Eles são todo Dom e Acolhimento,
Eles são Partilha e comunhão.
Trindade que sois dom e acolhimento,
Comunidade de amor total,
Naufragai os nossos barcos em vossas águas,
Abismos de ternura sem igual.
Trindade amiga, Trindade irmã,
Ensinai-nos o amor que torna a vida bela,
A fazer desta vida uma festa,
Vosso Reino de amor já nesta terra.
Vinde, segurai as nossas mãos,
Vinde brincar conosco de ciranda,
Ensinai-nos de novo a ser criança,
E convosco entrar em eterna dança.
Este cântico, expressa o desejo de entrarmos em comunhão com a Trindade Santa, a mergulharmos em seus “abismos de ternura”, a viver em uma comunidade de amor, sendo novamente como crianças para “dançarmos” com o Divino.
A respeito dos textos litúrgicos, tomemos os da Solenidade da Santíssima Trindade, que é celebrada no domingo depois de Pentecostes, do ano C. Já na primeira leitura, extraída do livro de Provérbios, no capítulo 8, diz a respeito de uma Sabedoria que já tinha sido concebida desde o princípio:
Assim fala a Sabedoria de Deus: "O Senhor me possuiu como primícia de seus caminhos, antes de suas obras mais antigas; desde a eternidade fui constituída, desde o princípio, antes das origens da terra. Fui gerada quando não existiam os abismos, quando não havia os mananciais das águas, antes que fossem estabelecidas as montanhas, antes das colinas fui gerada. [...] eu estava ao seu lado como mestre-de-obras; eu era seu encanto, dia após dia, brincando, todo o tempo, em sua presença, brincando na superfície da terra, e alegrando-me em estar com os filhos dos homens” (Lecionário Dominical).
Os últimos versículos apresentados, quando fala sobre “brincar na superfície da terra”, nos levam a compreender que Dom Valfredo, provavelmente interpretou que esta sabedoria, poderia ser a de uma criança (que ele cita em seu poema), que tem a capacidade brincar, cirandar e dançar, ou seja, movimentar-se. O desejo humano de adentrar o Mistério de Deus se dá a partir do movimento. São João Damasceno, em seus escritos, já vislumbrava essa “dança”, que ele chama de pericorése. Sendo assim, “com esse conceito deseja-se exprimir justamente o curso circular da eterna vida divina” (Moltmann, 2011, p.182), que o homem deseja ardentemente, “cirandar” com a Santíssima Trindade.
Como a própria relação trinitária de Deus está em perfeito movimento, quando penetramos esta “pericorése”, nos tornamos capazes de compreender, ainda que pela fé (lex orandi), aquilo que cremos (lex credendi) e desta forma transformamos nosso agir (lex agendi/vivendi) em um agir pericorético, que guiado sempre pela Trindade de onde nossa vida recebe movimento e consequentemente, a vida.
A Liturgia, segundo Jesús Castellano, é uma “festa da fé” (2017, p. 19) e o mais perfeito movimento, concreto e visível, que os homens encontram para encontrar e adentrar a dança divina. Isso é claramente expresso como o primeiro diálogo “pronunciado pelo ministro-presidente da celebração [...] são as palavras trinitárias” (Marques, 2023, p. 53). Em nome da Trindade, toda comunidade se reúne para celebrar os mistérios da fé e pela mesma fé adentram aos mesmos.
3- Adentrando o mistério
Quando o povo celebrante toma consciência da formação litúrgica a partir dos ritos e preces, verdadeiramente o movimento acontece de forma natural. A liturgia no aspecto espiritual e contemplativo, é um dos caminhos, se não, o mais ideal para que se compreenda o movimento que ela nos propõe. “Somente o influxo fecundo da liturgia na contemplação pode alimentar essa experiência [...] A contemplação, para ser genuína, deve levar ao mistério trinitário, favorecendo o crescimento de Cristo em nós e a docilidade ao seu Espírito.” (Castellano, 2017, p. 360).
Uma comunidade de batizados, podem assim chegar na “perfeita comunhão” quando ela “se esforça para fixar em Deus seu coração e sua mente” realizando “na contemplação o ato espiritual que deve ser considerado como o mais nobre e perfeito de todos.” (Castellano, 2017, p. 357). Esse esforço é o próprio movimento, que se realiza por um caminho mistagógico. E é através dessa experiência que nos encontramos com a própria Trindade, pois ao “celebrarmos a liturgia, é o próprio Cristo que nos atinge e nos faz participantes do mistério da comunhão com Ele, e com o Pai, no Espírito Santo” (Buyst, 2011, p. 120).
Quando de fato assumirmos de forma plena e consciente, o que falamos, ouvimos, cantamos, tocamos, ou seja, todas as ações rituais que tocam nosso ser, nosso corpo e sentidos, vamos de fato entrando naquilo que anteriormente apresentamos, a verdadeira “dança divina”, no movimento trinitário, no diálogo do Pai e o Filho pela ação do Santo Espírito. O caminho de mover-se pela liturgia é colocar em prática aquilo que explicita a Sacrosanctum Concilium:
Para assegurar esta eficácia plena, é necessário, porém, que os fiéis celebrem a Liturgia com retidão de espírito, unam a sua mente às palavras que pronunciam, cooperem com a graça de Deus, não aconteça de a receberem em vão. Por conseguinte, devem os pastores de almas vigiar por que não só se observem, na ação litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente, ativa e frutuosamente (SC 11).
Essa participação ativa e frutuosa, também se concretiza a partir de alguns aspectos que segundo Ione Buyst, apresenta como a “participação pessoal na ação litúrgica, no exercício dos ministérios litúrgicos, no ensino da liturgia e na ciência litúrgica” (2011, p. 57). Assim, a própria participação na Liturgia se torna meio para se adentrar ao mistério pela celebração ritual.
Se cada qual, em suas funções específicas, ministros ordenados, catequistas, ministros, entre outros, se comprometer com os aspectos citados no parágrafo anterior, de fato, toda a ritualidade se torna fonte para uma espiritualidade completa. Por isso, o Papa Francisco declara que a liturgia “não consiste em uma assimilação mental de uma ideia [...] mas é louvor à ação de graças pela Páscoa do Filho” (DD 41). Na liturgia encontramos verdadeiramente o Cristo. Somente quando adentramos, nos movimentarmos para o mistério, seremos capazes, através de nossos sentidos, tocar as realidades deixadas por nosso Divino Mestre.
Conclusão
A “parábola pintada”, sabiamente nomeada por Dom Valfredo (Tepe, 2000, p.20), demonstra claramente o movimento que tratamos neste texto. As três pessoas, aqui interpretadas, como a própria Santíssima Trindade, em perfeito movimento em torno do altar, do cordeiro imolado, celebram e dançam em perfeita harmonia. E é exatamente neste altar, que o povo eleito, faz este encontro divino, através dos sacramentos, nos movemos através de um diálogo frente a frente onde o “Deus invisível, levado por seu grande amor, fala aos homens como a amigos e com eles se entretém, para os convidar à comunhão consigo e nela os receber” (Tepe, 2000, p. 46).
A Celebração Eucaristica, como “sinal de unidade” (SC 47), é expressão concreta do plano eterno de Deus Pai, onde nos alimentamos das espécies de pão e vinho, que pela ação dialogal do presidente, implora pela vinda do Deus Espírito, para santificar aqueles dons em Corpo de Sangue do Deus Filho. E esse mesmo Espírito, é implorado também para nos santificar e tornarmos o corpo místico de Cristo. E é neste mover que adentramos na “dança divina” que São João Damasceno nos apresentou. A liturgia é o perfeito movimento, ação do Pai, pelo Filho no Espírito Santo. Desta forma, a “causalidade divina ‘flui’ nas criaturas” (Alves, 2022, p. 40) para que tenham em si uma inclinação ao bem supremo.
E assim, na doxologia final, o sacerdote ministerial que preside eleva as espécies consagradas, e no fim da grande prece eucaristica, é finalmente proclamada: “Por Cristo, com Cristo e em Cristo. A Vós Deus Pai, todo poderoso. Na unidade do Espírito Santo, toda honra e toda glória, pelos séculos dos séculos Amém!” (Missal Romano, 2023, p. 535). Louvemos a Santíssima Trindade, pois não é por nossa competência, mas pela graça, amor e pela imensa misericórdia por todos nós, que nos oferecemos como verdadeiras oferendas, ou simplesmente, nos movendo por ação divina.
Referências
ALVES, Anderson Machado Rodrigues. Apostila do Curso de Tomismo. Petrópolis, RJ, 2022.
Bento XVI. Carta Encíclica DEUS CARITAS EST. São Paulo: Paulus, 2006.
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2015.
BUSTY, Ione. O segredo dos ritos: ritualidade e sacramentalidade da liturgia cristã. São Paulo: Paulinas, 2011
CASTELLANO, Jesús. Liturgia e Vida Espiritual. Teologia, Celebração, Experiência. São Paulo: Paulinas, 2008.
FRANCISCO. Exortação Apostólica Desiderio Desideravi. São Paulo: Paulinas, 2022.
Lecionário Dominical A-B-C. São Paulo: Paulus, 1994.
GUARDINI, Romano. O Espírito da Liturgia. São Paulo: Cultor de Livros, 2018.
MARQUES, Frei Luis Felipe. A Mistagogia da Missa. Nos Ritos e nas Preces. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
MARSILI, Salvatore. Sinais do Mistério de Cristo: Teologia Litúrgica dos Sacramentos, Espiritualidade e Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2012.
Missal Romano. Brasília: Edições CNBB, 2023.
TEPE, Dom Valfredo. Nós somos um. Retiro Trinitário. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000.
[1] Seminarista da Diocese de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Graduando em Filosofia pela Universidade Católica de Petrópolis. Membro da Associação dos Liturgistas do Brasil.