DOMINICA II PASCHAE SEU DE DIVINA MISERICORDIA

DOMINICA II PASCHAE SEU DE DIVINA MISERICORDIA

 

Dom Jeronimo Pereira, osb*

 

A revisão do Ano Litúrgico operada pelo Concílio Vaticano II restabeleceu a centralidade do Mistério Pascal, recuperando, não somente a celebração do Tríduo Pascal, mas também trazendo à luz o “Tempo Pascal”. Os domingos que se encontram entre o dia da Páscoa e a celebração de Pentecostes, no Missal precedente (1570-1961), eram chamados de “Domingos depois da Páscoa”, com o Missal restaurado pelo Concílio, eles passaram a ser chamados de “Domingosde Páscoa”. Dentre eles, segundo uma venerável tradição, o segundo domingo sempre gozou de uma atenção especial. Com a publicação da III edição típica latina do Missal Romano (2002/2008), sob o pontificado do papa polonês Wojtyla (S. João Paulo II [1920-2005]), ele passou-se a chamar de “Dominica II Paschæ seu de divina Misericordia” (II domingo de Páscoa ou da Divina Misericórdia).

Um domingo “branco”

O segundo domingo de Páscoa é tradicionalmente chamado de domingo “in albis”. Estando a Páscoa diretamente ligada com o batismo, e vice e versa, de acordo com a frase latina “albis vestibus depositis”, esse é o domingo em que “as vestes brancas são depostas”. De onde vem esse conceito? Nos primeiros séculos da Igreja, de fato, o batismo era administrado, normalmente aos adultos que tinham aderido à fé cristã e feito o percurso catecumenal, durante a vigília da noite de Páscoa, e os recém-batizados, chamados “neófitos”, eram revestidos de uma túnica branca, sinal da nova vida na qual acabavam de entrar. Por “Batismo” entendia-se o grande sacramento da iniciação composto por três ritos: o banho, na água santificada e purificadora, a unção com o óleo perfumado, chamado de “óleo de ação de graças” ou “Crisma/Myron” e a manducação do Pão eucaristizado. Estes recém-batizados usavam essa veste cândida durante toda a semana da oitava da Páscoa, até ao domingo seguinte, chamado de “domingo no qual se depõem as vestes brancas”. Neste dia, os neófitos as usavam pela última vez.

Durante toda a oitava da Páscoa, os recém-batizados, revestidos com as suas vestes brancas, participavam das chamadas catequese mistagógicas, sendo paulatinamente introduzidos na experiência dos sacramentos celebrados, chamados de “mistérios”, e na vida da comunidade cristã. São João Crisóstomo (344-407) escreveu aos recém-batizados: 

“O que acontece aqui é de fato um verdadeiro casamento espiritual. Deduza-o do fato de que, assim como nos casamentos humanos as festas duram sete dias e o vestido de festa é enfeitado, também nós prolongamos essa festa espiritual por tantos dias, montando a mesa mística cheia de inúmeros bens. O que estou dizendo, sete dias? Estas festas espirituais durarão para sempre, se vós, permanecendo sóbrios e vigilantes, mantiverdes imaculada e deslumbrante a veste nupcial do baptismo” (Catequese VI,24).

Toda a semana seguinte à celebração do dia de Páscoa foi assim dedicada à catequese nos antigos ritos de iniciação cristã. Era função do bispo, primeiro catequista da Igreja local, no exercício do seu múnus de ensinar, acompanhar os neófitos nos primeiros passos e conduzi-los, através das várias celebrações, para além do limiar do mistério cristão. Tal catequese se fazia a partir dos ritos celebrados e das preces rezadas. A essa “semana catequética” estão ligados os grandes Padres da Igreja: Cirilo de Jerusalém († 386), Ambrósio († 397), João Crisóstomo († 407), Teodoro de Mopsuéstia († 428) ... 

O Rito de Iniciação Cristã de Adultos (RICA), reformado depois do Concílio Vaticano II, quis recuperar a antiga tradição da “mistagogia” como um período oitavário e, consequentemente, restaurar a valência simbólica da veste branca ligada à milenar tradição do domingo “in albis”. No número 37 o RICA sublinha que depois da participação nos três sacramentos da iniciação, Batismo, Confirmação e Eucaristia, os neófitos prosseguem o seu caminho na meditação do Evangelho, na participação na Eucaristia e no exercício da caridade, apreendendo cada vez melhor a profundidade do mistério pascal e traduzindo-o cada vez mais na prática da vida.

A antífona de entrada desse domingo retoma as palavras de 1Pd 2, 2: “Como crianças recém-nascidas, desejai com ardor o leite espiritual que vos fará crescer para a salvação. Aleluia”. É uma bela e antiga antífona que indica a todos os batizados que as suas “vestes brancas” da “infância espiritual”, simbolizadas nas vestes brancas dos recém-batizados, devem continuar brilhantes e luminosas na sua vida cristã quotidiana. A Coleta (Oração do dia), tirada do Missal Gótico, testemunha da tradição litúrgica ocidental não romana, implora para que que a Igreja cresça na graça que foi dada por Deus e compreenda a inestimável riqueza dos sacramentos da iniciação cristã: o Batismo que purifica; o selo do Espírito que regenera (Confirmação) e o sangue que redime (Eucaristia) (cf. 1Jo 5,4-10). A Oração sobre as oferendas retoma o tema do Batismo como regeneração e pede que a Igreja seja guiada à felicidade eterna. A Oração depois da comunhão fala da “força do sacramento pascal” que se deseja sempre operante nos corações.

Oito como um 

A semana da oitava da Páscoa, que, de certa forma, prepara o domingo “in albis”, é caracterizada atualmente por uma celebração própria para cada dia. As leituras dessa semana, iluminadas pelos textos eucológicos e pelas antífonas que funcionam como molduras do grande quadro celebrativo, funcionam como um “mapa mistagógico” para a catequese dos neófitos e, consequentemente, de todos os batizados que na noite santa da Páscoa renovaram as suas promessas batismais e fizeram memória do batismo por meio da aspersão com a água lustral. A primeira leitura é sempre tirada do livro dos Atos dos Apóstolos. Na segunda-feira apresentam-se as testemunhas da ressurreição (At 2,14-32) e se descreve o encontro de Jesus com as mulheres piedosas, a quem Jesus confia o anúncio aos discípulos do evento maravilhoso da ressurreição (Mt 28,8-15). Na terça-feira a Igreja é chamada à conversão à fé no ressuscitado e ao batismo (At 2,36-41) e é narrado o encontro de Jesus com Maria Madalena (Jo 20,11-18). A cura miraculosa, em nome de Jesus Cristo, operada por Pedro, fazendo caminhar o paralitico que pedia esmolas à porta do templo (At 3,1-10) e o encontro de Jesus com os discípulos de Emaús (Lc 24,13-35) são narrados na quarta-feira. Na quinta-feira temos o discurso de Pedro anunciando que a morte do autor da vida resultou na sua ressureição dentre os mortos (At 3,11-26) e o testemunho do evangelho que as profecias se cumpriram em Jesus, ressuscitado ao terceiro dia (Lc 24,35-48). À sexta-feira está reservada a palavra de que somente em Jesus Cristo temos salvação (At 4,1-12) enquanto o evangelho narra o encontro dos discípulos pescadores com Jesus à margem do lago de Tiberíades: a experiência eucarístico-pascal de comer com o ressuscitado (Jo 21,1-14) e, finalmente, no sábado, os discípulos afirmam com veemência que não podem “silenciar o que ouviram e escutaram” (At 4,13-21), porque esse foi o mandamento de Jesus: ir a todo o mundo anunciar o evangelho do reino a toda criatura (Mc 6,9-15).

Misericórdia! De uma revelação privada à liturgia

Como já dito e sabido, nesse domingo faz-se memória da “Divina Misericórdia”. Não é a primeira vez na história da liturgia que uma devoção privada de um determinado Papa se torna celebração litúrgica alargada para toda a Igreja. Esse é o caso, por exemplo, das solenidades de Corpus Christi e do Coração de Jesus.

A história registrou que, em revelação privada, no dia 22 de fevereiro de 1931, na cidade de Plock (Polônia), Jesus comunicou pela primeira vez à santa polonesa Maria Faustina Kowalska (1905-1938) o desejo de instituir esta festa, quando lhe transmitiu também a sua vontade sobre a “imagem” da Divina Misericórdia: “quero que haja festa da Misericórdia, quero que a imagem que vais pintar com o pincel seja solenemente abençoada no primeiro domingo depois da Páscoa, este domingo deve ser a festa da Misericórdia” (Diário, p. 145). Nos anos seguintes, Jesus voltou a fazer este pedido também em outras catorze aparições, definindo precisamente o dia da festa no calendário litúrgico da Igreja, a causa e finalidade de sua instituição, a forma de prepará-la e celebrá-la, bem como as graças concedidas aos fieis que aderissem a essa devoção.

Das páginas do Diário de Santa Faustina sabe-se que ela foi a primeira a celebrar esta festa, ainda que individualmente, com a permissão do seu confessor Michal Sopocko (1888-1975). No entanto, o culto da Divina Misericórdia no primeiro domingo “depois” da Páscoa já estava presente no Santuário de Lagiewniki (Cracóvia) em 1944. A participação nas celebrações fora tão numerosa que em 1951 se obteve uma indulgência plenária, concedida aos devotos por sete anos, pelo príncipe e Cardeal Adam Sapieha (1867-1951). O Cardeal Franciszek Macharski (1927-2016) introduziu a festa na diocese de Cracóvia com a Carta Pastoral para a Quaresma de 1985. Seguindo seu exemplo, os bispos de outras dioceses polonesas fizeram o mesmo nos anos sucessivos. A pedido do episcopado polonês, o papa São João Paulo II, em 1995, introduziu esta festa em todas as dioceses polonesas. No dia da canonização da Irmã Faustina, 30 de abril de 2000, ela foi estendida para toda a Igreja Católica de Rito Romano.

Observações de pastoral litúrgica

O Catecismo da Igreja Católica (n. 67) é claro em afirmar que “no decurso dos séculos tem havido revelações ditas ‘privadas’, algumas das quais foram reconhecidas pela autoridade da Igreja. Todavia, não pertencem ao depósito da fé. O seu papel não é ‘aperfeiçoar’ ou ‘completar’ a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente, numa determinada época da história”. O “Diretório sobre piedade popular e liturgia” (2002) da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, trata explicitamente da “Devoção à misericórdia divina”, sublinha que “o Segundo Domingo da Páscoa ou da divina misericórdia” constitui o ambiente natural para exprimir “a aceitação da misericórdia do Redentor do homem” e indica que os fiéis sejam “educados a compreender esta devoção à luz das celebrações litúrgicas destes dias pascais” (cf. n. 154). O número se conclui citando a encíclica “Dives in misericordia” (cf. n. 08), do Papa S. João Paulo II, onde se enfatiza que “o Cristo pascal é a encarnação definitiva da misericórdia, o seu sinal vivo: histórico-salvífico e ao mesmo tempo escatológico”, subordinando toda a “devoção” ao mistério celebrado na liturgia na tentativa de evitar toda e qualquer forma de contraria ênfase ou subordinação. Isso implica que os católicos são chamados a celebrar na liturgia, não uma “virtude (misericórdia) divina”, mas “O misericordioso divino”. De fato, a Coleta da Missa o invoca como o “Deus de eterna misericórdia”.

Ainda no âmbito da relação entre piedade popular e liturgia e da consciência de que as revelações privadas não pertencem ao depósito da fé, todas as prescrições ditadas pela visão para serem operados nesse dia (exposição de quadros e imagens) ou de preparação para ele (novena começando na sexta-feira santa) devem ser submetidas por graduação à forma de culto da Igreja que tem a primazia, a liturgia, respondendo a uma pergunta fundamental: tem sentido litúrgico? Uma das razões de uma tal “concessão” é de caráter histórico: no tempo das revelações, o domingo “in albis” estava desfigurado, tinha perdido o seu caráter de “domingo pascal”, era um domingo “depois da Páscoa”; a sua ligação com a Páscoa era de proximidade e não de essencialidade. A tematização de um domingo pascal como esse, corre o risco de levar a “lectio” litúrgica da Palavra de Deus, registrada no lecionário e do formulário da Missa, a dizer o que tematicamente se quer sustentar, invertendo a lógica interna que regula a fé da Igreja: legem credendi lex statuat supplicandi, como atestado no número 1124 do Catecismo da Igreja Católica: “Quando a Igreja celebra os sacramentos, confessa a fé recebida dos Apóstolos. Daí o adágio antigo: ‘Lex orandi, lex credendi – A lei da oração é a lei da fé’ (Ou: ‘Legem credendi lex statuat supplicandi – A lei da fé é determinada pela lei da oração’, como diz Próspero de Aquitânia [século V]). A lei da oração é a lei da fé, a Igreja crê conforme reza. A liturgia é um elemento constitutivo da Tradição santa e viva.

Aqui tocamos um elemento fundamental da liturgia: a liturgia é essencialmente “memorial”, não devocional, isto é: um ato de culto de presença, nela o Senhor se faz presente em face à sua Igreja e ao mesmo tempo a Igreja se coloca na presença do seu Senhor. O memorial, sobretudo, evoca diante do Pai o sacrifício único do Filho (Páscoa), que se faz presente no nosso fazer “sua” memória. Verdadeiramente, o memorial litúrgico não é uma lembrança subjetiva e interior de um evento passado (devoção), mas uma ação, composta de gestos e palavras (ritos e preces) que objetivamente traz consigo “por meio da proclamação ritual, a capacidade de dar uma invisível, mas real presença à coisa da qual se faz memória” (S. Marsili). Quando transformamos a liturgia numa espécie de “devoção” anulamos a presencialidade e a reduzimos a uma forma de subjetivação privada. A passagem da liturgia enquanto memorial a uma “liturgia devocional” (se é que se possa existir algo do gênero), comporta necessariamente a uma compreensão personalista e pouco comunitária do objeto “celebrado”, nesse caso concreto, ficamos numa misericórdia sem obras de misericórdia.

Finalmente, um dos elementos fundamentais da liturgia restaurada pelo Concílio Vaticano II foi a “veritas”: a verdade das horas, dos dias, dos gestos, dos objetos, dos elementos, das palavras etc. A fixação do início da Novena da Divina Misericórdia para a Sexta-feira santa acaba provocando um deslocamento do horário da Ação Litúrgica para o fim do dia, início da noite, com o intuito de promover à recitação das orações devocionais, interferindo no coração do Tríduo Pascal, “o vértice das celebrações pascais e de todo o Ano Litúrgico” (NUALC 18). Sobre esse perigo específico o “Diretório sobre piedade popular e liturgia” adverte que “é necessário que tais manifestações de piedade popular nem por escolha de horário, nem pela modalidade de convocação, pareça aos olhos dos fieis como uma substituição das celebrações litúrgicas da Sexta-feira Santa. Portanto, na organização pastoral da Sexta-feira Santa deverá ser dado o primeiro lugar e o máximo relevo à solene ação litúrgica e se deverá explicar aos fieis que nenhum outro exercício de piedade deve substituir objetivamente a apreciação dessa celebração” (cf. n.143). 

  Com relação à novena que acontece ao longo de toda a Oitava da Páscoa, completamente distante, intencionalmente e formalmente, da mistagogia própria desses dias, poder-se-ia dizer o mesmo que o “Diretório sobre piedade popular e liturgia” no número 155 diz sobre a “novena” de Pentecostes: “Na realidade, no Missal e na Liturgia das Horas, sobretudo nas Vésperas, esta ‘novena’ já está presente. Os textos bíblicos e eucológicos recordam, de vários modos, a [misericórdia]. Portanto, sempre que possível, a novena da Divina Misericórdia deve consistir na solene celebração das Vésperas. Se, por outro lado, esta solução não for viável, que a novena da Divina Misericórdia reflita os temas litúrgicos dos dias que vão da segunda-feira ao sábado da Oitava da Páscoa.

Misericordias Domini in aeternum cantabo” (Sl 88,1).

Boa Páscoa. 

 

Para aprofundar:

ADAM, A. O ano litúrgico. Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019.

AUGÉ, M. Ano litúrgico. É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019.

BERGAMINI, A. «Tríduo pascal», in Dicionário de liturgia, ed. Sartore, D.–Triacca, A. M. São Paulo: Paulus, 1992. pp.1198-1202.

PONTIFÍCIO INSTITUTO LITÚRGICO SANTO ANSELMO (ORG.). O ano litúrgico. História, teologia e celebração. São Paulo: Paulinas, 1991.

 

* Dom Jerônimo Pereira, beneditino, Doutor em Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico (Roma), presidente da ASLI. 

 

 

 
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