PENTECOSTES: UM TRAÇO BRASILEIRO A SER REDESCOBERTO

PENTECOSTES: UM TRAÇO BRASILEIRO A SER REDESCOBERTO

João Benedito Ferreira de Araújo, OFMConv.*

 

1.     Pentecostes: uma questão cultural

O povo brasileiro sempre teve uma forte relação com a espiritualidade, portanto, o aspecto religioso sempre teve um forte vínculo intrínseco com a cultura do país, com sua vida social e econômica. Esta terra e sua população sempre se mostraram terreno fértil para o crescimento de diversas formas rituais com frequência muito diferentes entre si, que se enraizaram de maneira profunda, conseguindo conviver no interior da mesma sociedade.

A igual peculiaridade da assim chamada Terra Brasilis data de sua história de imigração, tanto livre, como forçada, que fez com que logo se verificasse um encontro constante entre culturas que apresentavam a característica comum de serem profundamente permeadas pela experiência do sagrado, como a indígena, a lusitana, e a africana. Os diversos aspectos dessas tipologias religiosas fundiram-se entre si criando a típica espiritualidade brasileira, que compreende rituais de proveniência diversa que com frequência se misturam entre si, resultando em novos ritos. É possível, por exemplo, recordar uma festa popular em particular que tem o nome de Folia do Divino. Nessa manifestação é vislumbrada uma origem joaquimita da crença na chegada da era do Espírito. Durante os festejos, é organizada uma representação na qual um menino representa o rei português joaquimita Henrique que liberta os encarcerados e oferece a todo o povo um fausto banquete. Essa festa popular recorda, como no período da colonização do Brasil, alguns movimentos heréticos que eram ferozmente perseguidos em seus países encontram espaço na colônia enraizando-se profundamente. O Brasil, portanto, era visto por aqueles que fugiam da repressão portuguesa como uma terra doada por Deus, que podia dar nascimento à nova era do Espírito.

Diferente de outros países, no Brasil, o espírito religioso não parece, portanto, ser atenuado com o passar do tempo, mas antes parece evidente a existência de uma busca espiritual insatisfeita, especialmente entre os meios populares rurais e urbanos. Eles buscam, e em geral encontram, respostas para satisfazer as necessidades cotidianas de espiritualidade e de esperança nas novas confissões que são introduzidas no país (SANTO DOMINGO, 1995, p.245).

2.     O Espírito como desejo místico de todas as religiões

Quando olhamos o estudo comparado das religiões, é possível ver um desejo comum do fiel de ter uma relação íntima com o sacro. Tal desejo se manifesta comumente no anseio em participar de um banquete com o sagrado, ou até mesmo de comer o próprio transcendente, para ensimesmar-se com ele. Começa assim um processo que, entre o desejo e a realidade, vai fazendo com que o fiel se sinta uma coisa só com o sacro. 

Sempre mais me ressoa à mente a frase de Karl Rahner, no seu famoso ensaio, Christian Living Formerly and Today, onde ele diz: “O cristão devoto do futuro ou será um ‘místico’ – alguém que ‘vivenciou algo’ – ou não será absolutamente nada”. Sempre mais vejo que a espiritualidade do momento, sobretudo em terras brasileiras, requer uma resposta mística, algo que nós teólogos temos dificuldade de assimilar, e mais ainda de refletir, mas que a piedade popular é ansiosa, portanto. Tenho sempre mais chegado à convicção de que o crescimento pentecostal no mundo latino, e sobretudo católico, se deve, não somente, mas também a esta busca (por vezes ingênua e desenfreada), de suprir uma lacuna que a liturgia não adaptada e inculturada, e a fria dogmática, não conseguiram, e não conseguirão sanar.  

O Espírito Santo apresenta-se com diferentes simbolismos que o caracterizam, por exemplo, o da chama,[1] ou da pomba, em referência a Cristo[2], ou ainda o da nuvem e o da luz[3], bem como o do vento, que reencontraremos no Pentecostes. É obrigatório sublinhar que na medida em que uma ampla parte do Primeiro Testamento é base, tanto da religião hebraica, quanto da cristã e da islâmica, em todas as três há o conceito de Espírito Santo. 

No Ocidente, o termo Espírito deriva do grego πνεύματος ou πνεύμα, ou seja, pneuma, de πνέωpneô, ou seja, respirar e ter vida. Do substantivo neutro provém o termo pneumatologia, ciência teológica judaico-cristã do estudo do Espírito.

No Primeiro Testamento há a descrição do Pentecostes, a Festa das Semanas, celebrada cinquenta dias após a Páscoa, comemoração da teofania do Sinai (cf. Ex 19,1-2). No Segundo Testamento a Festa é relida tornando-se em Festa do Espírito. A grande novidade da descida do Espírito Santo, que a distingue de outros eventos estáticos pregressos de ebriedade mística, é o caráter logosmítico ao se transferir de Deus à Terceira Pessoa, ou seja, o Deus Espírito Santo, visão que é projetada no futuro dos últimos dias da história humana, definida por Joaquim de Fiore como a Era do Espírito Santo. Em Pentecostes, portanto, encontra-se a problemática do princípio e do fim. Segundo Ernest Bloch: “O pentecostes suscita também uma diferente invocação de um Criador completamente diferente, privado do Pai Omnipotens no qual é conservada a categoria originária celeste do princípio criado, sem separá-la da única que resta, ainda que lhe seja contrária aquela do princípio da salvação” (BLOCH, 1983, p.286).

Após o Pentecostes, quando “apareceram como línguas de fogo, que se dividiram e pousaram sobre cada um deles, e todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, do modo que o Espírito dava o poder de se exprimirem (At 2, 3)”, o tema dos dons carismáticos é muito frequente no Segundo Testamento, sobretudo nas cartas de Paulo. O pentecostalismo moderno revigorou um aspecto do cristianismo há tempos subvalorizado na dimensão institucional e, pela primeira vez, a efusão se torna um verdadeiro evento litúrgico e, portanto, coletivo, elemento que se tornou sua expressão mais significativa.

No mundo católico, a efusão do Espírito assume um vínculo muito estreito com os sacramentos da iniciação cristã, sobretudo os do Batismo e da Crisma. No interior do pentecostalismo, ao contrário, assumem muito mais valor a efusão e os dons carismáticos, a tal ponto que poderiam ser considerados mais importantes que a própria via sacramental. Mediante esse rito, a comunidade acolhe os recém-ingressados em uma vida nova, na liberdade da fé e do amor. 

3.     Os dons carismáticos e sua eficácia

No exame dos fenômenos religiosos, em particular na realização das curas miraculosas nos movimentos carismáticos, Csordas se interrogou sobre a eficácia e os efeitos dos processos rituais e suas causas principais. O antropólogo, na célebre obra The Sacred Self: A Cultural Phenomenology of Charismatic Healing, interrogou-se sobre tal questão: Esses fenômenos, presentes também nos ritos de outras religiões, foram analisados por diversos autores, chamando sua atenção e suscitando neles o desejo de explicar suas motivações. Um dos estudiosos mais famosos que se ocupou dessa questão foi Charles Sanders Peirce, fundador do pragmatismo e pai da semiótica moderna. O autor, de uma perspectiva semiótica, definiu esses episódios como “ícones indiciais”. Podem ser considerados os motores da religião pentecostal: o sentimento de pertença a essa religião e a conversão moral. Ambas as subcategorias podem ser consideradas como manifestações daquela função do rito que Durkheim havia denominado como amálgama social. A. Terrin conclui: “Durkheim considera essencialmente os ritos como expressões simbólicas e por isso capazes de almagamar o tecido social de modo tão profundo que o sociólogo francês chega a considerar o aspecto religioso do rito em relação ao sócio-cultural e simbólico em uma concepção plenamente subordinada. De tal modo, o rito religioso deseparece como tal, ou melhor, transfere toda sua força simbólica e coesiva ao social (...). Dado por certo que o aspecto religioso tem uma clara validade simbólica e agregadora, ela então serve ao social e se resolve no social” (TERRIN, p.52).

Quem provém de uma sociedade em que crescem as igrejas pentecostais ouve com frequência notícias acerca da conversão de personagens famosos do mundo do esporte e da arte, bem como de pessoas que vivem à margem da sociedade. Em relação a estas, o culto pentecostal soube reunir com facilidade os elementos que vivem “no limite”, isto é, vivem em situações de grande degradação, extrema pobreza, encarcerados, mas também na prostituição ou dependência de drogas. São exemplos de situações em que o credo pentecostal conseguiu penetrar de modo profundo. É provável que tal sucesso tenha sido o fato de ser uma religião “simples” e não destinada à compreensão de poucos, mas, ao contrário, uma religião para todos. Chamou nossa atenção a presença do pentecostalismo em ambientes em que o ser humano vive em seu limite, bem como a adesão daquelas pessoas que não se encontram em uma sociedade pensada para poucos. Atualmente, alguns pesquisadores sustentam que a maior parte da população carcerária brasileira seja de fé pentecostal e que a maior parte dela tenha ali se convertido.

O Santo Padre, São João Paulo II, debruçou-se largamente, lançando mão de ações pastorais bem precisas, capazes para tanto. Essas ações vão, desde uma atenta análise, para que os métodos pastorais que levaram os fiéis católicos a buscar outras religiões fossem revistos, e que o fiel católico pudesse voltar, e ter uma atenção religiosa, fortificada nos princípios da comunhão, da missão, por meio de uma religiosidade popular purificada. Também identificou a necessidade de a Igreja Católica estar atenta ao fato de que as pessoas necessitam de apoio espiritual, mas também precisam de apoio material, e que por isso a força do associativismo é determinante nessa redescoberta. Nesse cenário, a liturgia deve servir para fortificar a dimensão espiritual e contemplativa, e não mais apenas com o olhar voltado para as necessidades materiais. Por fim, o Santo Padre enfatiza o papel das dioceses nesse viés para que comunidades de base, movimentos e grupos familiares realizem projetos comuns. 

Esse desafio é acompanhado por outras indicações de ação: a Igreja deveria ser mais comunitária e participativa, a paróquia deveria se tornar “uma comunidade de comunidades” mediante o anúncio do Ressuscitado, da catequese e da ministerialidade; o reforço da identidade da Igreja deveria ser dado pela veneração da Eucaristia e da Virgem, a obediência ao Papa e ao bispo, a devoção para com a Palavra de Deus; deveria inserir nos planos pastorais a contemplação e a santidade como uma prioridade; os ministros deveriam dar testemunho de vida e de acolhimento, sobretudo nos momentos de crise: “Promover uma liturgia viva, participada e que se projete sobre a vida”; formar o povo na doutrina da Igreja, e informar acerca das diversas seitas.

Na 5a Conferência, considero que o momento mais iluminador da Assembleia de Aparecida tenha sido a identificação das causas de abandono da Igreja católica na América Latina. O texto é determinante e acentua um conceito que pode, para um observador distraído, parecer risível, mas que na verdade, deve ser interpretado como base de pertença fundamental para uma mudança de rota da moderna evangelização católica: as pessoas se unem a outros grupos religiosos não porque querem sair da Igreja católica, mas porque buscam Deus de modo tangível. Entretanto, pode-se afirmar que, finalmente, com a Assembleia de Aparecida é dado um passo importante na compreensão do fenômeno e se chega a compreender que, para abordar esse problema, não devemos nos limitar a considerar a situação no plano dogmático, mas que deva ser avaliada com uma visão que tenha um ponto de vista primordialmente pastoral. Ainda não chegamos à noção de que nada disso basta e que se faz necessário ter também uma visão de nível litúrgico.

4.     Uma questão litúrgica: o rito como ponto de conversão

A liturgia, portanto, é a origem da ação da Igreja, seu ponto de partida, sua fonte, da qual obtém sua força vital. Ao mesmo tempo, a liturgia é o ponto de chegada da ação eclesial, o cume da vida da Igreja. O ponto final e culminante no qual converge a liturgia é a glorificação de Deus, a união com Deus e a participação da ação divina. 

Desse vínculo profundo, tanto entre o gesto ritual e as palavras, quanto entre gestos e sinais litúrgicos, emerge uma última e essencial consideração acerca da liturgia: ela é uma ação litúrgica, tanto teológica, quanto antropológica; tanto teocêntrica, quanto antropocêntrica. Como sintetizaram de modo magistral alguns autores, a liturgia é uma ação teândrica, que compreende a ação da graça divina, mas também a resposta da ação do homem.

Em uma cultura como a brasileira, o primeiro modo para se falar ao coração dos fiéis é o de propor uma ritualidade capaz de amalgamar o grupo dos crentes e, alinhada à tradição da Igreja, fazer-lhes se sentirem parte de um único corpo místico, de uma comunidade eclesial da vida de todos os dias. O que falta ao catolicismo de base, e que, portanto, é buscado em outras religiões, é o componente antropológico que se explica mediante símbolos e sinais, que conduz a uma religiosidade seguramente mais simples e pobre, mas seguramente vivida de maneira mais direta, mais participativa e mais espontânea.

Adotando não apenas uma linguagem canônica e doutrinal, mas ampliando tal linguagem e desenvolvendo uma comunicação emotiva e não verbal, o rito católico pode traduzir na linguagem brasileira os seus precisos conteúdos evangélicos. Tal afirmação pode ser feita pela análise da cultura brasileira em que parece fundamental o auxílio de uma comunicação não verbal, explicitada pela linguagem corpórea, mediante o canto ou a dança. 

5.     Para uma adaptação ritual

Em um povo como o brasileiro, um dos códigos pelos quais se deve transmitir o conteúdo de fé não pode senão ser o da dança e da alegria expressos sob a forma da festa. A música e a festa possuem um valor fundamental na cultura brasileira, sendo quase parte integrante do status nacional. Este é o caminho para restaurar os vínculos com os fiéis brasileiros: oferecer a eles uma ritualística mais adequada para sua índole e uma Igreja que saiba sustentá-la, mas sem perder sua canonicidade natural e necessária.

Tais afirmações nos conduzem à consciência de que o objeto do problema é representado pelo modus operandida própria Igreja em relação aos povos dos países em desenvolvimento. Não se trata de falta de fé das pessoas, mas de um distanciamento por parte da Igreja, tanto por seu modo de se aproximar dos problemas das pessoas, quanto pelo modo como eles são geridos.

Esse problema pode ser em grande medida resolvido se for considerada a sua natureza primordialmente litúrgico-pastoral. É o rito litúrgico, portanto, a resposta ao quesito que motivou a elaboração deste trabalho. É na readaptação do rito latino aos aspectos culturais do povo brasileiro que a liturgia pode ainda realizar seu tradicional princípio eclesial que expressa sua alma e essência: lex orandi, lex credendi.

A solenidade de Pentecostes nos coloca diante, portanto, de algumas questões que devem ser retomadas: 

·    a Igreja que nasce, ou se consolida em Pentecostes, não é aquela somente de Jerusalém, mas tal festa mostra a unidade e a diversidade da nossa catolicidade, e deve impelir a Igreja do Brasil a ter coragem e ousadia para ter uma adaptação do rito que seja consoante à mentalidade brasileira. Sobre isto muito já foi feito, mas sinto que nos últimos tempos estamos mais interessados em replicar formas europeias (de uma Igreja secularizado) do que valorizar a religiosidade do nosso povo. 

·    O crescimento do Pentecostalismo no Brasil, dentro e fora da Igreja, não pode ser um fator sociológico desprezado, nem mesmo lido somente pela chave econômica. É preciso deixar-se provocar por este fenômeno e  valorizar o que ele possa nos ensinar, e que penso sobre o qual, fundamentalmente, existe um apelo de dar um sentido litúrgico a nossa corporeidade, pois o brasileiro é um povo do corpo e este não pode ser esquecido no rito. 

·    Enfim, existe uma forte marca do Divino (modo como é chamado o Espírito Santo) na religiosidade popular. É preciso conciliar este belo patrimônio existente com a liturgia da Igreja, para que tenhamos um modo de dialogar com as gerações passadas, evangelizando aquilo que deve ser mudado, e conservando o que tem de precioso. 

*Franciscano conventual, presbítero, mestre e doutor em Liturgia pelo Instituto de Liturgia Pastoral (Pádua – Itália), com tese sobre os movimentos pentecostais não católicos. Atualmente é Reitor e Pároco do Santuário São Francisco de Assis em Brasília-DF; Vigário Episcopal para a Vida Religiosa da Arquidiocese de Brasília. 

 

BLOCH, Ernest. Ateismo nel Cristianesimo per la religione dell’Esodo e del RegnoMilão: Feltrinelli, 1983. 

CSORDAS, T. J. The Sacred Self: a Cultural Phenomenology of Charismatic Healing. Berkeley: University of California Press, 1997.  

DOCUMENTO DE S. DOMINGO. Discurso inaugural. Enchiridion Documenti della Chiesa LatinoAmericana. Bolonha: Editrice Missionaria Italiana, 1995. 

DOCUMENTO DE APARECIDA. Brasília: Ed. CNBB, 2007. 

TERRIN, A. Il rito: antropologia e fenomenologia della ritualità. Brescia: Morceliana, 1999.  

 



[1] A chama é símbolo da capacidade do Espírito de transformar as coisas: “E repentinamente uma chama que vinha do Senhor devorou o holocausto e a gordura toda que estavam sobre o altar. Vendo isso, o povo louvou o Senhor, prostrando-se por terra (Lv 9, 24)”. 

[2] “Tendo sido batizado, Jesus sai das águas. Os céus se abriram e eles viram o Espírito de Deus descer como uma pomba e pairar sobre ele (Mt 3, 16)”.

[3] “E o Senhor lhes precedia para lhes mostrar o caminho durante o dia com uma coluna de nuvem, durante a noite com uma coluna de fogo, qualquer que fosse o momento de sua viagem. Nunca deixou de haver uma coluna de nuvem durante o dia nem a coluna de fogo durante a noite, seguindo à frente do povo, indicando-lhe o caminho e protegendo-o do sol do deserto (Ex 13. 21-22)”.

 
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