Quaresma: Tempo de Mudança e Reencontro

Quaresma: Tempo de Mudança e Reencontro

Monsenhor João Alves Guedes

A misericórdia e a miséria são realidades que perpassam nossa própria história e andam juntas: Deus invade o peregrinar humano com a sua misericórdia, enquanto o homem e a mulher invadem com a miséria esta mesma história. Assim sempre foi e sempre será enquanto as pessoas povoarem esta terra. Resta-nos a indiscutível realidade da misericórdia que chega com incrível exatidão depois da miséria. O coração inconstante do ser humano bate confiante na sintonia e na ternura do coração divino-humano de Jesus Cristo certo da cura que é sempre franqueada. Na estreita intimidade que vamos, paulatinamente, construindo com a Trindade Santa, vai se desfazendo os estragos que a miséria provoca e se restabelece a madura parceria que o coração humano inconsequente e titubeante com o coração de Jesus, intrinsecamente forte.
A Quaresma é tempo de reestruturação, recuperação, reencontro, redescoberta, retratação, revisão e de novas chances: reestruturação e recuperação das virtudes que foram atingidas por nossas inconstâncias e fragilidades; reencontro forte com o Pai do céu por vezes tornado frio por nossas molezas e apatias; redescoberta do amor sem limite de Deus e retratação humilde das nossas feridas que provocamos em nossos irmãos e no coração amado de Jesus; revisão de nossos comportamentos através de um sério balancete humilde de tudo o que temos feito. Afinal, chances não se devem perder e a Quaresma é o tempo desta grande chance que Deus nos dá através da sagrada Liturgia da Igreja.
O seguro caminho trazido pela Quaresma é percorrido através do tripé: Oração, Jejum e Esmola. Na Oração o homem cultiva de maneira excelente seu relacionamento de filho com Deus que se revela como Pai. A Oração constitui uma abertura para Deus, para o irmão e para o mundo. Ela é um perene sim de acolhimento à vontade de Deus, um grito de louvor apaixonado ao Pai, com quem estabelecemos uma via de ida e volta. É a inteligente descoberta da supremacia divina sobre nossas limitações, da eternidade de Deus que se comunica com nossa transitoriedade onde a passageira existência humana se restabelece e se revigora na solidez inconteste do Pai do céu sempre terno, acolhedor e aberto a todos nós; no Jejum está sinalizado o nosso jeito de buscarmos nossa liberdade. Somos seres superiores, senhores da criação. O homem que se escraviza, mergulhando em determinada paixão, trai sua própria vocação para a qual foi criado: estar no mundo sem ser do mundo, mas caminhante do céu. Jejuar é saber fazer espaço em si, para Deus, para o próximo e para os valores que permanecem. É buscar, incansavelmente, a hierarquia dos valores em nossa vida. Aqui entenderemos a beleza das coisas do universo, o fascínio das coisas materiais com suas perenes seduções, sem deixarmos que aconteçam as possíveis inversões de valores: a submissão do homem se curvando à potencialidade da matéria ou das paixões. Afinal, temos em nós as marcas e realizações de Jesus que venceu a morte e é exatamente nesta dimensão
que se compreende a finalidade da Quaresma: o fato do Tríduo Pascal da Paixão, Morte, Sepultura e Ressurreição de Jesus Cristo, Ascensão, razão máxima de nossa fé.
A Esmola é entendida no relacionamento do homem com o seu próximo, na virtude teologal da caridade. Ela nos sinaliza a mística da partilha na abertura do coração para o irmão. Recebemos tudo de graça e temos em nós a própria semelhança de Deus. Jesus se doou totalmente a nós. Toda esta gratuidade não pode ficar na periferia do nosso ser, escondida e esquecida. A Esmola é a seta que nos mostra que o amor ao irmão não é uma alternativa que deve ser praticada ou não; é, sim, uma essencial obrigação para o homem que quer cultivar no coração a semente da eternidade. Agora se entende o tamanho e o valor do Tripé: de Deus somos dependentes e a Oração nos liga a Ele numa comunicação que não pode ser interrompida, embora reconhecendo que somos sempre seres inferiores; da natureza, com toda a sua composição material, somos superiores e nunca escravos. Somos, com Deus, os construtores da história através da compreensão do que é o Jejum; do irmão somos iguais, nunca superiores. É na partilha que se encontra o verdadeiro sentido da vida. A Esmola não é a pedagogia de oferecer coisas, mas é a ação de si oferecer. No abraço da cruz, não se abraça somente a parte vertical que nos aponta para o infinito e para Deus, como também se abraça a parte horizontal com os braços abertos para o irmão.
A Quaresma é sem dúvida, um tempo possuidor de sólido teor pascal-batismal que conduz cada cristão a voltar-se para a Páscoa do Senhor e o nosso Batismo, sacramento essencialmente pascal. O itinerário quaresmal, através de uma sábia pedagogia celebrativa posiciona-nos a sermos novas criaturas na mística singular da espiritualidade quaresmal. É tempo de exigente silêncio interior, penitencial e de purificação que há de nos levar a uma viva experiência atual da participação no Mistério Pascal de Cristo que purifica a Igreja, corpo místico, através de uma ação santificadora. A Igreja é comunidade pascal porque é batismal; afinal, ela é chamada a exprimir continuamente o sacramento que a continua gerando. É tempo de grande convocação do povo de Deus para que se deixe purificar e santificar pelo seu Salvador e Senhor. Vê-se com clareza o aparecimento de uma espiritualidade pascal, batismal, penitencial e eclesial. Esta espiritualidade poderá ser atingida pela escuta e vivência da Palavra, oração intensa e prolongada, jejum e obra de caridade.
O percurso da Quaresma se desenvolve pelos três itinerários bem presentes no lecionário dominical com as leituras bíblicas e da rica eucologia: no ano a, uma Quaresma batismal e de iniciação cristã. Quando há catecúmenos nas celebrações dominicais e os escrutínios nos terceiro, quarto e quinto domingos para aqueles e aquelas que receberão o Batismo, Crisma e Eucaristia na Vigília Pascal, podem ser utilizados os textos do Evangelho sobre a samaritana, o cego de nascença e a ressurreição de Lázaro, do ano a, mesmo sendo ano b ou c. No ano b, encontra-se uma Quaresma cristocêntrica e no ano c, uma Quaresma penitencial.
A Quaresma bem celebrada e vivida é o grande termômetro de nossa peregrinação terrena e se torna um tempo propício de mudanças e reencontros conosco mesmos, com Deus e com o irmão.

 
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